O diretor como espectador de profissão 1.
Há uma intuição amorfa que é minha relação com a peça. Estou convencido de que esta peça precisa ser feita hoje, e sem esta convicção não posso fazê-la. (Brook, 1987)
Em 2007 me deparei, pela primeira vez, com o conceito de intuição amorfa desenvolvido por Peter Brook e colocado em questão pela professora Joana Lebreiro na disciplina Direção III. Lembro-me que neste momento comecei a ter clareza de que aquilo que eu viria a produzir como diretor teatral dizia respeito, em primeiro lugar, ao meu universo particular. Independente do ponto de chegada, a partida derivaria sempre de um ponto de vista particular que buscasse encontrar seu eco num espaço outro. Foi quando passei a dar atenção às minhas intuições e a pensar com mais cuidado sobre o espectador, sobre aquele ao qual eu destinaria a minha produção.
No final de 2008, ao começar a montagem de Direção V sobre o texto PASO-DE-DOS (do dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky), cuja estreia aconteceu em dezembro de 2009, me deparei com a noção de inconsciente coletivo. Na obra Em busca de um teatro pobre, Grotowski afirma: para que o espectador seja estimulado a uma auto-análise, quando confrontado com o ator, deve existir algo em comum a ligá-los, algo que possa ser desmanchado com um gesto, ou mantido com adoração. Portanto, o teatro deve atacar o que se chama de complexos coletivos da sociedade, [...] aqueles mitos que não constituem invenções da mente, mas que são, por assim dizer, herdados através de um sangue, uma religião, uma cultura e um clima (Grotowski, 1968) .
A partir dos escritos de Grotowski, desenhei uma “função” para a obra de arte que me interessava: ser ela capaz de gerar em quem se relaciona com ela, alguma autonomia crítica. Para isso, seria inevitável um embate, algum encontro provável entre obra e espectador. Fui então estudar o inconsciente coletivo a fim de esclarecer aquilo que Jung supõe que sejam sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade (Jung, 1943) . Ora, se minhas montagens teatrais se destinavam ao outro, talvez eu devesse buscar entender alguma lógica possível sobre o outro. E, logo, optei que meus exercícios de direção se tornassem embates vivos, mais questionamentos e menos respostas, porque pelo encontro me parecia ser possível evocar no espectador algum esforço individual de compreensão. Mais que isso: evocar no espectador sua(s) maneira(s) de lidar com a obra e, inevitavelmente, sua(s) forma(s) de ler o mundo.
Acabei achando tudo isso pretensioso demais. Mas algo me dizia que era isso sim. Dessa forma, a melhor maneira de encontrar clareza foi se jogar em meio à escuridão. Fui então com minha Direção V experimentar estas intuições por sobre um texto de violência e dependência entre um homem e uma mulher, entre um torturador e uma torturada. Já em processo com os atores, cheguei a um ditado popular que assegurava em si justamente uma leitura que eu queria “atacar”. Uma leitura que precisava ser relativizada, a fim de perder seu posto de verdade universal e configurar-se, naturalmente, como uma possibilidade e não mais como fim, inevitabilidade.