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quarta-feira, 30 de março de 2011

Sobre aquilo que seduz

PASO DE DOS
Eduardo Pavlovsky
Tradução: Maria Angélica Keller de Almeida

ELE (enquanto fala deve realizar todos os movimentos sugeridos pelo texto) Olhando para a frente. Talvez de perfil. Agora olho na minha mão. Viro a cabeça para a direita, agora para a esquerda, posso olhar outras vezes para a frente. Pausa. Não. Tenho que fazer alguma coisa, golpeio meu joelho esquerdo. Me levanto. Me sento. Coço o nariz. Trato de que cada gesto tenha sentido, quer dizer, que adquira uma dimensão de espontaneidade. Não quero vazios. Olho para a frente, bruscamente para trás. Me agrada olhar um ponto fixo. Me sustenta. Lustrada de sapato nas calças. Necessito de mais atos. Uma boa massagem no pescoço, rotação de cabeça. Tudo como se fosse normal. O tempo se deteve. Um bocejo, outro bocejo, um leve sorriso, uma penteadinha, coçada na testa, batidinha de sapato no chão. Assobio. Assopro. Vou ao banheiro. Não estou com vontade. Volto. Me sinto bem. É preciso aprender a se sentir bem. Olho o teto. Como falta ainda, meu Deus! Lustro outra vez o sapato direito. Faço de conta que penso em algo concreto que me preocupa. Faço gestos de quem descobre alguma coisa. Assumo uma cara de safado. Imagino que me lembro de uma aventura amorosa. Imagino os lugares. Me distraio um momento. Volto ao vazio. Não! Quanto falta? Penso em minha mãe. Tento reter a imagem do rosto da minha mãe. Me lembro. Me coça o nariz. Deixo que me coce... para ganhar tempo enquanto me coço. Me coço um pouco. Me esfrego. Uma pausa depois de tanto esforço. Que fazer, meu Deus! Um pouco de esperança. Dura pouco. Agora, desesperança. Finjo que esqueço uma coisa e agora me lembro. Abro a boca. Fecho. Tusso. Tusso duas vezes. Tusso três vezes. Agora finjo que me sufoco. Faço de conta que me recupero. Como continuo? Quanto falta? Mudo a cadeira de lugar. Torno a mudar a cadeira de lugar. O tempo não passa. Me sento no chão. É bom sentar no chão, muito bom. Ando. Paro. Ando. Mexo os quadris. Sou homem. Sou mulher. Sou criança. Sou animal.
Que pretensioso! Um pouco de representação, um pouco de humor, de bom humor, de humor fino, de humor inglês.
Pausa. Pausa. Pausa. Comecemos outra vez. O que acontece se eu me deixo ficar? As imagens se detêm. As caras como imagens sem dimensões. Tudo plano. Talvez um pequeno discurso, ou melhor, um método, algum recurso que pudesse me distrair... Pausa. Quanto falta, meu Deus! Como demora... tudo isso demora muito... pensar eu não posso... já gastei o pensamento de sustentação... preciso de altos, ações...
A vida nos lança no vazio e nós dizemos no ar “vou por este caminho, escolho este outro, me equilibro entre aqui e ali”.
Bem que eu queria explicar os fatos, as circunstâncias desencadeantes, explicar as causas. Dizer: esta atitude eu posso explicar deste modo. Só posso dizer que sou absolutamente responsável por tudo, não me arrependo absolutamente de nada, minhas atitudes são a única coisa que faz algum sentido, um fio para seguir... Sou responsável por cada uma das minhas intensidades... isso é certo... absolutamente certo. Essa é minha certeza.
Qual era o problema? Agora o tempo modifica tudo, acho que o tempo modifica tudo.
[...]

Trecho inicial da peça. Essa dramaturgia que nunca cessa. Que só pede pede e nunca termina. Como pode? Caber tanto mistério dentro de um punhado de palavras? Dentro de apenas uma interrogação?