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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sobre aprisionamento(s)

Tentarei relatar um pouco sobre a experiência que foi apresentar NÃO DOIS na Penitenciária Feminina Tavalera Bruce, em Bangu. Nossa presença aconteceu dentro do projeto Teatro na Prisão, desenvolvido dentro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Na terça-feira dia quatro de outubro, por volta de 10h começávamos a apresentar nosso espetáculo, rodeados por cerca de cinquenta mulheres e mais uma dezena de profissionais (dentre eles diretora e vice-diretora da prisão, além de coordenadoras e professoras da Escola na qual boa parte das detentas assistem aula).

Fomos até a prisão numa van, da própria Unirio. Ao chegar, deixamos dentro do automóvel tudo o que não fosse estritamente necessário a execução da peça. Deixei minha mochila, carteira, chaves de casa, celular, moedas. Entrei somente com a roupa do corpo (que não podia ser de algumas cores específicas) e com a carteira de identidade. Levamos o cenário nós mesmos, cruzando os corredores da penitenciária e cumprimentando as inúmeras mulheres que ali trabalhavam. Poucos homens ocupavam o espaço. Os dois seguranças da porta de entrada e, fora estes, sobrava eu, o ator Dan Marins e um estagiário do projeto Teatro na Prisão.

Entramos, depois de muitos corredores, num auditório. Um espaço sujo, com cheiro de fezes, completamente empoeirado, no qual já estavam dispostas algumas dezenas de cadeiras plásticas, brancas. Havia um palco, cerca de oitenta centímetros acima do chão onde a audiência ficaria. Optamos por realizar a apresentação no mesmo “andar” que o das mulheres que nos assistiriam. Recortei a área cênica com uma fita crepe, criando uma área de 6m de largura por 5m de comprimento. Posicionamos as cadeiras tanta na frente desta área como nas duas laterais, preservando a parede dos fundos.

Não tivemos muito tempo. A segurança, responsável pela porta do auditório, solicitava que deixássemos as mulheres entrar, por conta da algomeração que havia se criado do lado de fora. Os atores rapidamente trocaram suas roupas. Quando entramos na prisão, fomos abordados por conta de uma calça masculina preta. É esse o figurino de Dan, porém, é também a cor e a vestimenta características dos seguranças. Logo, fomos avisados de que deveríamos voltar com a calça, que isso seria revistado quando voltássemos.

Mal os atores se posicionaram no espaço e as mulheres começaram a entrar no espaço. Foi curioso, entraram com certa urgência, se posicionando nas cadeiras e no chão. Por um segundo me assustei, porque a maioria entrou na sala com as mãos para trás. Achei que estivessem algemadas, mas não. Era apenas algum comportamento “aprendido” ali dentro. Elas andavam com as mãos para trás naturalmente. E eu olhando todas aquelas mulheres e tentando medir, de alguma forma, o que nos separava. Qual horror, ou acontecimento, que as fazia prisioneiras daquele lugar. Enfim, não posso esconder que fiquei surpreso ao não encontrar nada. Busquei seus olhos e o clichê da instituição prisão aos poucos foi perdendo força e cor. Não que eu não soubesse disso, mas eram mulheres, antes de tudo, eram pessoas.

Muito barulho. Falatório. A coordenadora do projeto disse algumas palavras, agradecendo a presença de todas as presidiárias. Em seguida, fui eu quem pontuei algumas coisas. Falei que apresentaríamos o espetáculo NÃO DOIS. Informei que a duração era de aproximadamente quarenta minutos e que no fim, se possível, gostaria muitíssimo de conversar, bater um papo, ouvir e falar sobre aquilo que dentre em pouco assistiríamos. Pedi a todas o máximo de silêncio, para que pudéssemos ouvir tudo e, em silêncio, me repreendi por tê-las pedido – mais uma vez – silêncio.

Não sei exatamente o que esse texto quer dizer. Não me preocupo. Meus pré-conceitos devem estar saltando e aparecendo. Tudo bem. A experiência vivida com esta apresentação faliu muitas coisas, muitas noções, muitos sentidos. Durante a apresentação, era nítido que os atores (Dan e Natássia) tentavam, por vezes, falar mais alto, puxando a atenção de volta a cena. Foi curioso ouvir risadas, comentários sobre a primeira cena. Foi curioso ver mãos nas bocas, olhares perplexos lançados para lá e para cá. Achei que a peça, de fato, não as pudesse interessar, mas era cedo demais para pensar qualquer coisa. Me contentei em assistir ao espetáculo.

A nossa estrutura geral do espetáculo foi simplificada. Era um auditório completamente iluminado por inúmeras janelas que não puderam ser cobertas. A escuridão, tão necessária ao espetáculo, se perdeu. As luminárias, nem chegaram a entrar na penitenciária. Eram apenas os atores dentro de um área demarcada. E eu pensando sobre essencialidade. Eu pensando em espetacularização e por ai vai.

Algumas mulheres foram ao banheiro. Outras estavam muito atentas. O texto de Pavlovsky, completamente rebuscado ou, nem isso, apenas recheado de palavras pouco usuais, causava aproximações e afastamento. Eu nem vi a peça. Eu vi seus olhos. Eu ali me sentindo um cara estranho, errado, tentando ler nos olhos daquelas mulheres alguma coisa. Era tão especial tudo aquilo. E os olhos sempre dizem mais do que dizemos.

Pensei de novo em encontro. Pensei mesmo. Eu pensei um pouco mais sobre o que significa levar a uma prisão uma peça que fala de aprisionamento, que fala de violêncio contra a mulher, que fala de morte e dependência. Uma peça que fala de sobrevivência, vingança, temas que até então me eram temas e nem tanto acontecimento. Temas como conceitos. Vazios de jogo, de corpo e tudo mais. Apenas ideias. Ali, alguma coisa foi tornando as palavras mais densas do que eram. Os corpos dos atores, atritando, se batendo, a cena – aquele artificial todo – foi ficando mais grave, mais leve, ficando mutante e respirando.

Talvez você que lê este texto esteja me achando muito romântico, apaixonado ou coisa assim. Tudo bem. Eu talvez esteja embriagado pela força que este encontro abriu. Eu pensando sobre pontos de vista. Sobre quais pontos de vista aquelas mulheres miravam aquele objeto, aquela cena. A violência do personagem masculino sobre a feminina foi se intensificando. E um pouco mais. E a sedução ao mesmo tempo crescente. E algumas mulehres reagiam com palavras, gritos, reagiam com selar de mãos e braços, entre elas. Quando o espetáculo chegou ao fim, com a personagem feminina “vencendo” a opressão masculina, foi algo como a redenção de todas. Vibravam e gritavam e, em seguida, muitas palmas. Enquanto eu pensava meu deus, eu não acho isso bom. Mas, importa o que eu acho?

Puxamos um bate-papo e pronto. Muitas falaram, as opiniões se multiplicaram e as certezas morreram, intranquilas. Fiz perguntas, fomos perguntados. Especulamos outras possibilidades. Contei alguns casos, detalhes da criação, falei do processo, do vestido de casamento da minha mãe. Ouvi daquelas mulheres coisas como “ela estava desde o início tramando uma vingança”; “a vilã é ela”; “isso tá acontecendo na cabeça dele”; “isso que vocês apresentaram é exatamente a realidade”; “eu vivi isso, durante dez anos”; “ela fez isso com medo de apanhar dele”… Em suma, nossa conversa ficou num entre vida e obra que nunca foi tão interessante. Falamos do aprisionamento, eu puxei um papo sobre o aprisonamente, eu ali logo em seguida me culpando por estar falando certas palavras. Mas, depois, confesso, eu pensei, que essas mulheres sabem o que era tudo aquilo. Falar de aprisonamento era como chover no molhado. Era redundante. Eu não deveria me exigir tanto cuidado, tanto zelo.

Foi papo franco e sem frescura. Algumas mulheres se emocionaram, começamos a falar de experiências pessoais e a “multiplicação dramática” de Eduardo Pavlovsky em plena ação. No final, muitos agradecimentos, abraços, apertos de mão. A coordenadora do projeto disse que esperava muito que as mulheres interessadas na aula de teatro (ministradas por estagiários) pudessem se inscrever. E, por conta do horário oferecido para tal aula (apenas dois dias, no turno da manhã), a diretora da prisão informou que as mulheres que estudassem de manhã, poderiam ir para a aula de teatro que ainda assim teriam sua presença (do colégio) contada da mesma forma.

Não sei mais o que escrever. Tenho a sensação de que ficarei ainda um tempo com tudo isso na cabeça. Esse texto é menos verdade e mais um relato (em palavras) daquilo que gostaria de registrar, para não correr o risco de esquecer a potência daquilo que chamamos ser nosso trabalho.

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