ELA Lá, nas nossas intensidades, focos de luz deformando nossos rostos, a maca em posição inverossímil, a eletricidade e seu protagonismo, as pancadas secas, algodões e o cheiro de sangue coagulado, desafio aos limites de hoje e um pouco mais, a música que parecia nascer dos nossos próprios corpos. Agonias, os suores frios, a morte espreitando, tudo isso reunido entre nós, objetos com força própria, movimentos diferentes e ali nossos corpos, fazendo parte de tudo isso. Nos enganamos quando pensamos que nós é que gerávamos as paixões e a energia, porque quando todo o dispositivo desaparece nos encontramos só com nossa nudez, você e eu, descobrimos com horror que as paixões tão nossas faziam parte da cenografia do acontecimento. Por isso hoje só você e eu enfrentamos o vazio da perda do sentido, e isso é insuportável. Na minha memória só ficou disso tudo a lembrança dos movimentos.
A noção de que está tudo no texto é assustadoramente real. Às vezes, fazendo o caminho de volta ao que foi escrito, tudo parece ter ficado ali, persistindo, fortalecendo as raízes e se reproduzindo. É uma sensação irrevogável. Quanto mais se entende por fora, mais por dentro o texto vai te abrindo outros espaços e nunca será o bastante, porque o espaço literário poeta sozinho. Basta olhar para as linhas para a rima para o fundo do papel, que a resposta é sempre ela mesma um novo e outro princípio. A noção de começo. A noção do possível.
Ele e Ela ali objetos com força própria. Objetos que se fecham em seu contato, que não esperam nada que possa vir de fora. Uma ignorância inata, uma exclusividade pretensiosa e fatal. Somos o mundo ou o mundo nos é? A resposta vem pelo abandono. Quando percebemos o mundo é porque ele nos afagou. Percebemos o mundo inteiro quando ele vem em ondas e faz persistir a nossa dor. A nossa dimensão de universo veio pela falta. Hoje eu sei que existe o mundo porque em mim cessou a fala, porque em mim não há explicação, porque em mim queimaram-se os fósforos e resto eu assim, em pausada putrefação. Pausada porque ainda resta tempo para olhar: como estou indo no decorrer das horas.
É dessa força, desse contexto, dessa conjuntura, dessa obra. Estou falando desse monumento, dessa estruturação, desse céu, desse firmamento. Dessa maquinaria, desse DEUS EX MACHINA, somos hoje fruto, somos partida, não resultado. É difícil se ver como caminho, como percurso, não como objetivo concretizado. Operamos o ser deus com as nossas mãos, com os nossos corpos, e é brincando de ser além que nos esquecemos do que somos fomos.
A cenografia do acontecimento é tão artificial quanto sincera. Ela é um exterior marcado pelo maquinal, mas é também uma maquinal presença, uma maquinal e sincera existência, fruto de nossa criada invenção. A cenografia do acontecimento está de fora porque persiste em nós o desejo pelo umbigo. Persiste em nós uma persistência histórica, um egoísmo inculto, uma satisfação incrivelmente horrorosa dos seres que se bastam. Que se bastam e se comem e se olham - no meio dessa fome - partidos já, já dilacerados. Seres que no meio do banquete se reconhecem falidos, enganados. O que não se percebe porém, é que o engano foi nossa criação.
De fora veremos o que há dentro. Como se o exterior iluminasse a imensidão íntima. Como se a luz nas quintas nos cantos da sala iluminasse as ruínas, as rugas, as persistências, iluminasse a luz a luz das retinas. A cegueira constante. Iluminasse a rotina e a mostrasse tão trivial. Tão sem estofo, tão essencial posto seja banal.
Invertemos o jogo. O que há fora, o maquinal exposto, é tão mais sincero do que esse interior por si apaixonado. Pois quando todo o dispositivo desaparece (quando toda a cena é devolvida ao mundo, quando deixa de ser cena, quando revelam-se as paredes, as luzes, a maquinaria, a encenação, o público) é que vemos o sentido daquela arte, daqueles corpos, no mundo presente. Descobrimos que nossas paixões são antes de todo o mundo. Descobrimos que a nossa parcela genuína só assim é, porque se permite devolver ao mundo.
O vazio. Da perda. Do sentido. O que fica, inevitavelmente, é a lembrança dos movimentos. A lembrança dos movimentos que como movidos por força divina, bestial, celestial, não precisam de peso nem de pernas nem de significado. Movem-se os deuses sem se explicar.