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sábado, 24 de outubro de 2009

O Projeto de PDD

“Mas o teatro de Pavlovsky não é de denúncias locais e caricaturais, pois ele sabe que para representar figuras odiáveis é preciso aprender a superar o horror e entrar em seu sistema de afetos. Para investigar a lógica de um torturador, é importante compor o personagem a partir das contradições do humano e não de bons sentimentos ou esquemas maniqueístas”. [1]

SOBRE O AUTOR
Eduardo Pavlovsky nasceu em Buenos Aires, em 1933. Além de dramaturgo, é também ator, médico e psicodramatista. Pavlovsky fez história não somente dentro do teatro argentino, sendo um dos poucos artistas de teatro latino-americano que goza de renome internacional fora do continente. Algumas de suas 27 peças escritas foram publicadas no Brasil no ano passado, dentre elas, PAS-DE-DEUX, que na versão brasileira foi intitulada de PASSO DE DOIS.
Na apresentação da coletânea brasileira, Betch Cleinman identifica nas obras de Pavlovsky aquilo que seriam balbucios, mais especulações e menos verdades sobre a história argentina contemporânea. História essa fortemente marcada pela tortura, pelos seqüestros e apropriação de filhos de militantes por membros da repressão dos governos militares. Seus textos ultrapassam o que poderia ser um simples retrato dramático, social e/ou psicológico de uma época. Vão mais além, pois se configuram como afirmações poéticas que sugerem a necessidade de sermos mais do que nunca utópicos. Defensor de uma imaginação criadora, por isso também libertadora, Pavlovsky abre com suas obras novas perspectivas e esperanças para o futuro.

SOBRE A PEÇA
PAS-DE-DEUX (1990) é o sugestivo título (em francês) que faz referência ao que seria a parceria entre bailarinos. Formando um par com seu parceiro, torna-se possível à bailarina saltar mais alto e realizar movimentos que jamais seriam possíveis caso fossem tentados solitariamente. O título sugere de imediato, portanto, uma relação marcada pela dependência e que, na peça, é ainda mais desbravada. Pavlovsky, a partir de dois personagens anônimos (ELE e ELA), fala ao universal: o que vemos é um caso de violência na relação homem/mulher, na relação torturador/torturada.
No entanto, em sua dramaturgia não basta identificar os valores estabelecidos em nossa sociedade. É preciso expor suas engrenagens para que, a partir disso, seja possível questionar. Parte-se, então, daquilo que se poderia chamar de inconsciente coletivo, aqueles mitos que não constituem invenções da mente, mas que são, por assim dizer, herdados através de um sangue, uma religião, uma cultura e um clima[2]. E é por sobre tais valores que o dramaturgo lança um olhar que desvela como o ser humano é naturalmente complexo e contraditório. Um olhar que ultrapassa rótulos e revela as fundações, que atesta pelas motivações o caráter genuíno das personagens.
Em PAS-DE-DEUX estamos diante de um par que chegou ao esgotamento de sua relação. Pavlovsky expõe a violência sexual do homem e sua dependência física e intelectual frente à mulher, que na sua situação de vítima, encontra refúgio em sua própria força psíquica. Enquanto ELE a todo o momento quer se apoderar d’ELA, esta se vinga ao rechaçá-lo, ao não reconhecê-lo e a sequer lhe dar nome. A vítima é destruída fisicamente, mas o torturador não consegue se apoderar de sua palavra. O silêncio – ou, o não-reconhecimento – é a forma pela qual a vítima tortura o torturador.
Assim, além de identificar tais personagens e expor aquilo que as gerou, Pavlovsky ainda lhes confere a ação, pelo corpo e pelo verbo. Independe se em conformidade ou não com os valores da sociedade contemporânea, são personagens que inauguram possibilidades outras de relação. E sendo assim tão bem fundados, torna-se difícil duvidar da sinceridade de seus gestos. São personagens que nos confrontam com outros horrores e afetos. Com possibilidades de relação que sequer pensávamos que fosse possível existir e perdurar.

“Se há, pois, descoberta de Freud é a seguinte: nossa relação com o mundo e com nós mesmos não é instaurada por um objeto, mas pela falta de um objeto, e de um objeto de eleição, essencial, de um objeto querido, já que, na figuração edipiana, por exemplo, é da mãe que se trata”. [3]


SOBRE A ENCENAÇÃO
Minha proposta de encenação para PAS-DE-DEUX parte da vontade de investigar e de experimentar a possibilidade do horror e do afeto num mesmo movimento. Um espaço que me permita pôr em questão a nossa estranha capacidade de amar e matar num mesmo gesto. Parto, inicialmente, da palavra. É pelo verbo que se torna possível desbravar as personagens e descobrir seus paradoxos, seus medos e desejos. Em seguida, acrescento à encenação uma leitura muito pessoal sobre o texto original: a de que a personagem feminina (ELA) está morta, a de que ELA foi morta por ELE.
Isso me lança irremediavelmente na noção de SOBREVIVÊNCIA. Para mim estão os dois personagens imersos nesse estado. Por isso há nos dois o esforço de relembrar o que viveram juntos, as experiências compartilhadas. ELE quer reviver o que passou por conta das intensidades trocadas, mas também porque voltar ao passado dispersa o fato – presente – de ELE a ter matado. ELA, por sua vez, revivendo o passado consegue se vingar d’ELE, mas também é pela retomada do que passou que ELA parece assegurar um pouco mais de sua existência.
Para isso, a encenação aposta num espaço intimista, como um simples quarto de dormir (provavelmente, na sala 115 ou 120 da ECO). Aliado ao espaço, vislumbra-se trabalhar com um outro corpo em cena, como representante do corpo morto da personagem feminina. A presença de uma boneca, de pedaços de algum corpo, algo partido, assassinado. ELE se relaciona com o que restou (a boneca), enquanto ELA sobrevive como um espírito, incapaz de se relacionar – concretamente – com ELE ou quem quer que seja.
É pela noção de falta que os dois ali se estruturam. Os dois seres ali pelo o que perderam é que parecem se classificar. Eles são o que já foram. Eles são o que por eles passaram, o que por eles se perdeu. O momento presente diz respeito ao passado. O presente diz respeito ao ato de sobreviver, de restar, de durar, de ainda conseguir se manter mesmo com todas as perdas. De perdurar, de resistir e nisso também poder se reinventar.

JUSTIFICATIVA
A dramaturgia de Eduardo Pavlovsky é, sem dúvida, um dos principais motivos deste exercício de direção. O poder de sugestão que sua peça evoca, a violência que se multiplica em poesia e que com ela se confunde parece ser um concentrado muito rico das relações humanas do hoje em dia. E ao olhar para este hoje em dia, o que me impressiona ainda é a facilidade do rótulo, nos ausentando de qualquer responsabilidade sobre o contato, afinal, tudo pode ser classificado, mesmo que nem se conheça aquilo a se classificar.
Com Pavlovsky, essas atitudes se voltam contra seus autores e reivindicam a eles – e a nós – sua parcela de culpa. Que valores são esses que propagamos sem ao menos compreendermos? Que virtualidade é essa que age sobre nossos relacionamentos e que nos impele à solidão? PAS-DE-DEUX aponta para o óbvio e o desmonta, afinal, nem sempre quem cala consente. Nem sempre.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
MELMAN, Charles. O Homem Sem Gravidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
PAVLOVSKY, Eduardo. O Teatro de Eduardo Pavlovsky. Rio de Janeiro: Solar das Metamorfoses, 2008.


[1] PAVLOVSKY, Eduardo. O Teatro de Eduardo Pavlovsky. P.6.
[2] GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. P.36.
[3] MELMAN, Charles. O Homem Sem Gravidade. P.21
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