Rio, 04 de junho de 2009.
Segue troca de e-mails com Jéssica:
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dear,
estou com uma insônia horrorosa. acho que estou tomando mto café. enfim, estou pesquisando algumas referências e te envio algumas coisas.
bizarro o poder do insconsciente (indifere o nome). eu te falei de "a morte e a donzela". nem sabia ao certo porque. fui pesquisar e vi que se trata de um filme do roman polansky (um maravilhoso diretor, que fez coisas lindas como "o pianista", "chinatown", "o bebê de rosemary"...) >>> http://www.imdb.com/title/tt0109579/
enfim. se trata - o filme - da versão cinematográfica de uma PEÇA ARGENTINA de um dramaturgo chamado Ariel Dorfman
e que também roteirizou o filme. conta a história de uma mulher que um dia descobre que seu vizinho é, na verdade, um homem que a torturou no passado durante um governo fascista. ela fica no dilema entre se vingar ou não, ...
enfim. já fiz o download do filme. tenho que comprar um DVD virgem para gravar todas essas coisas para você. ou podemos combinar de assistirmos juntos.
>>> referências estéticas
em 2007, veio para o riocenacontemporanea, um espetáculo de uma companhia italiana
chamada Socìetas Raffaello Sanzio. o espetáculo se chama HEY GIRL!. eu participei como figurante (eram 40 homens que espancavam uma menina com travesseiros). coloquei o link aí embaixo de um trailer da peça.
o que quero dizer, enfim, (depois te levo um livro com fotos da peça), é que havia uma imagem de metamorfose, que era a atriz principal, acordando sobre uma mesa e tendo uma pele se desprendendo. são imagens, conforme conversamos. mas é louco. observe o tamanho da cabeça dela. observe a luz das fotos. isso é um lugar interessante esteticamente.
as fotos estão em anexo.
>>> outra referência, é o trabalho do encenador TADEUSZ KANTOR. este site reúne algum material sobre ele. talvez seja o mais completo. http://www.cricoteka.com.pl/en/index.php está em inglês, mas vc pode ir buscando e clicar em FINE ARTS, e depois em OBJECTS e dar uma olhada nas concepções de objetos cênicos.
neste link a seguir - http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artescenicas/teacontemp/tadeuszkantor05a.html
- temos o manifesto do teatro da morte, que eu levo xerocado para vc, numa tradução excelente que foi publicada no folhetim.
O nosso segundo encontro foi também muito revelador. Estamos entrando na questão do horror e do afeto. Na introdução do livro com peças de Pavlovsky que foi publicado aqui no Brasil no ano passado, Betch Cleinman fala que para entrar no universo do torturador, é preciso superar o horror e penetrar na sua lógica dos afetos. Ou seja, não cabe aqui maniqueísmos. A construção do personagem deve partir da contradição. Talvez esteja escrevendo neste momento uma excelente constatação que me dê chão para começar a pensar nisso – já é hora.
Como construir esses personagens?
Pela contradição. Pelo ser violentado e violentar o outro como resposta, como tentativa de resolução de si mesmo. Evoluir...
Noite.
Respostas aos e-mails:
Lá vai o manual.
Ele obviamente não fala de tortura, porque é um documento oficial e esse tipo de documento não pode dar carta branca pra bater e espancar a todos, mas todos sabemos que a realidade da ditadura não foi assim - eu que o diga, meu avô foi um dos presos e mortos por ela.
Mas o manual tem uns tópicos maravilhosos sobre como deve ser o comportamento do interrogador em relação ao interrogado.
O começo do texto parece que nada se aproveita, mas algumas páginas depois que se torna interessante.
Eu já grifei várias coisas.
Na página 11, na parte de "Tratamento de Prisioneiros" - vale a pena todos os tópicos.
Depois, na página 15, os "Métodos de Interrogatório". As abordagens de aproximação são ótimas.
"O interrogatório é um confronte de personalidades" - Página 16 (achei essa frase tudo).
Por fim, o tópico "Qualidades de um Interrogador", página 17, vale a pena tudo que está descrito ali.
Depois dessas preliminares, aí começa a descrição do método de interrogação. Maravilhoso, nem vale colocar páginas aqui. Acho ótimo como eles sempre repetem como o interrogador deve sempre ser insistente e persistente (= obsessão?) e também como reafirmam que o interrogado deve estar sempre numa posição inferior ao interrogador.
E amei a definição do sobreviver - nunca tinha ouvido falar da primeira. Faz todo o sentido. E essa viagem do Intransitivo com não necessitar de um complemento, vide um outrem, faz mais sentido ainda.
Pra apimentar:
1. Sobrevida
Vida após um determinado limite
s.f. Estado daquele que sobrevive a outro. / Vida futura, prolongamento da existência além da morte. / Sobrevivência.
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Os termos sobrevida e sobrevivência realmente não significam a mesma coisa em linguagem médica. Mas Manuel Freitas e Costa, Dicionário de Termos Médicos (Porto, Porto Editora, 2005), define-os assim:
sobrevida: «acto de sobreviver»
sobrevivência: «viver para além do esperado» Pude, no entanto, saber que em português europeu, na área da oncologia, o uso de sobrevida corresponde a «vida com continuação da doença», enquanto sobrevivência significa a «situação de sobreviver livre de doença».
Beijos!
2009/6/4 Diogo Liberano diogoliberano@yahoo.com.br
you are amazing.
quantas coisas boas, vamos por parte:
pois é, eu e rick fizemos a tal figuração. levo o livro com mais fotos na terça.
eu levo o manifesto para você, não se preocupe.
beleza então. também vou assistir ao filme e a gente conversa sobre.
os objetos do kantor são bárbaros, a gente conversa mais sobre eles ao vivo.
conversaremos sobre as suas fotos!
eu adorei essa do livro do João Ubaldo. é mais fácil comprar ou xerocar? se puder, traga. pode ser interessante a gente investir nessa humanização do personagem masculino. algo que é bem difícil de se captar em PDD.
pasmei,
eu quero esse manual agora. pode mandar que eu imprimo e levo na terça, daí a gente xeroca.
é, tô tomando (café) com cuidado.
e agora, só adiantando:
fiz uma pesquisa agora mesmo sobre SOBREVIVER.
SOBREVIVER
so.bre.vi.ver
1. (intransitivo)
- viver depois da morte de outrem
- escapar
- durar
- continuar a ocorrer
Desenvolvendo as primeiras idéias que me ocorreram: essa questão do sobreviver, a partir do conceito acima, traz a sobrevivência não somente para ela, mas para ele também, afinal ele está tentando sobreviver após a morte dela e ela tentando durar após ter sido morta. Daí, o que mais me marcou foi o fato de 1) ser VERBO e 2) ser um VERBO INTRANSITIVO.
Seguindo: verbo pressupõe AÇÃO, ou seja, teatro!
e ser intransitivo (quer dizer que é um verbo que exprime estado, qualidade ou ação que não passa do sujeito, portanto, não pede complemento direto ou indireto)
ao contrário dos verbos transitivos, que exigem complemento, seja este diretom, indireto ou ambos.
Resumindo: acho que o campo de ações dela pode ser os dos verbos INTRANSITIVO e o dele ser dos TRANSITIVOS, ou seja, ele sempre precisa de complemento (PAS-DE-DEUX) e ela não, ela sobra, ela consegue se bastar, afinal, está morta, por isso intransigente, intransigível....
viajando!
obrigado por tudo,
avant
bjos
diogo
--- Em qui, 4/6/09, Jessica B. escreveu:
De: Jessica B. jessiebaasch@gmail.com
Assunto: Re: referências...
Para: "Diogo Liberano" diogoliberano@yahoo.com.br
Data: Quinta-feira, 4 de Junho de 2009, 11:21
Eu não acredito, essa última foto da peça era uma das fotos que eu ia te mandar. Mas amei ver o trailer, porque sempre quis entender direito essa foto.
E esse cabeção é demais. O Ricardo tinha me mostrado uma vez, não sabia que era da mesma peça.
Ótimo você ter mandado o manifesto, já ia pedir pro meu amigo xerocar pra mim. Se quiser eu peço e lhe poupo esse trabalho. rs. Vou dar uma lida agora mesmo.
Eu amo o Polansky, sem dúvida que os filmes dele são maravilhosos - porém nem tinha idéia desse filme. Pode deixar que eu baixo também, não precisa gravar. Aí assisto e a gente já comenta na próxima Terça.
Vou ler tudo isso. Já fuxiquei bastante desse site do Kantor. Viu a "máquina de tortura" do Water-Hen? Tesão. Amei também a cruz do "Veículo funerário". Será que tem outros na mesma linha que ele?
Enfim, vou repassar as fotos que te falei. Tem a da sala de tortura da Argentina (é o título da foto) e outras são salas de tortura e interrogatório esporadicos que achei. Ah, tem uma foto também que é uma dessas sessões de psicodrama - por curiosidade.
Vou adiantando: eu tenho um livro que considero meu segundo livro preferido, do João Ubaldo Ribeiro, chamado "Diário do Farol". É um homem de 60 e poucos anos que mora sozinho num farol, numa ilha inabitada e conta a história de sua vida repleta de atrocidades - o livro termina com ele contando a época que foi um interrogador/torturador da ditadura aqui no Brasil e ele tem um pequeno trecho explicando como é um torturador para ele
"O torturador não é um anormal, é um normal, mas é como se fosse necessário [...] uma espécie de espoleta para detonar nele esse roldão de sentimento animal, que depois se transforma numa cachoeira de gozo e deleite, numa relação indescritível."
Esse é um trecho, te mostro mais ao vivo.
Eu queria ter te falado de um filme que vi na nossa última reunião, se chama 'Grimm Love', mas esqueci. Não sei exatamente se dá pra tirar algum proveito dele, é basicamente a história verídica de um canibal da Alemanha - enfim, qualquer coisa vc me lembra de mencionar na Terça que vem caso eu esqueça de novo. rs
Estou juntando mais coisas - nossa reunião me levantou muitas curiosidades e questionamentos (que bom, né?) e vou esperar ter tudo mais conciso na minha cabeça pra te mostrar.
Agora, pasme: não vai acreditar o que achei na internet!
Um documento entitulado "Manual de Interrogatório". Sim, isso mesmo. É um documento que foi entregue a todos os policiais e interrogadores da Ditadura Militar no Brasil. São 40 páginas e funciona realmente como um manual. Explicando todos os aspectos do interrogatório, o porque, o como, o objetivo e todos os fatores que a comprometem.
Quer que eu passe por e-mail ou levo uma xerox na Terça?
E tome cuidado com o café, procure dormir bem senão as idéias não fluem!
Beijão!
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Gente, tudo está ficando complexo. Corro agora para dar forma. Veio-me agora que posso selecionar matrizes outras que não o texto, que venham com intuito de servir de estímulo para composições e improvisações, com intuito de compreensão e construção da cadeia de horror e afeto de cada personagem. Após isso, volta-se ao texto de Pavlovsky e o potencializa. Algo como a noção de raiz para o espetáculo teatral. O texto dele como raiz. Mas a peça, o espetáculo, a encenação – como fruto – divino, posto maculadamente humano.
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