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domingo, 1 de novembro de 2009

Reflexões sobre o processo criador


Por Eduardo Pavlovsky – Tradução Leandro Valle
SAVERIO - Revista Cruel de Teatro - Buenos Aires – Argentina

Quando descobri o teatro, o descobri como ator, mas confesso que nunca tive medo de me expor com todos os “meus traumas” no palco. Se choviam críticas sobre meu exibicionismo e minhas estranhas tendências psicopatas; entretanto, eu sentia que crescia, que a criação artística me enriquecia e que minha interpretação dramática sobre determinados personagens me ajudava a compreender melhor certos fenômenos psicopatológicos, a criação artística humaniza, sensibiliza e enriquece.

Por que você é ator? Me perguntou um dia um analista. Porque eu posso, lhe respondi. Disse Fenichel: “Melhor ator seria aquele que não houvesse desenvolvido ainda uma verdadeira personalidade distinta, que estivesse disposto a representar qualquer papel que lhe oferecessem, que não tivesse ego, e sim um monte de possibilidades de identificação”. Disse Weissman também, sobre a criatividade no teatro: “Do mesmo modo que o ator, o exibicionista sexual está constituído de tal maneira que suas perversões também têm qualidade de representação, que deve continuar. O exibicionista, como o ator pode vestir-se também com roupas do sexo oposto, ou do mesmo sexo, para negar a angústia inconsciente de ser castrado. O exibicionista e o ator, se vêem continuamente obrigados a representar outra identidade, o que reduz temporariamente sua ansiedade. O uso legítimo que faz o ator de trajes e papéis proporciona uma solução satisfatória a suas necessidades por medo de perder o pênis, assim como a pesquisa de uma imagem corporal”.

É curioso: que eu não quisesse me opor a este tipo de interpretações, porque não há dúvida de que o ator necessita de um certo nível de exibicionismo para atuar. E mais, o comprovo em mim; pessoalmente tenho uma timidez fóbica que utiliza técnicas contrafóbicas para vencer seus medos infantis. Minha asma na infância seria um bom exemplo dessa natureza. Mas minha experiência como ator tem demonstrado também, que podemos realizar esteticamente um personagem em forma correta, quando se pode elaborar e aceitar os aspectos mais rejeitados, incluídos no perfil deste personagem. Quando realizei o papel de um homossexual na peça “Atendendo ao senhor Sloane” de Joe Orton, tive que entrar em contato toda minha homossexualidade e com meu mundo perverso latejante. No começo não podia julgar bem o papel, porque não aceitava minhas possibilidades homossexuais. Me defendia com rigidez deste papel. Porém, a medida que pude analisar e aceitar todos os meus componentes femininos passivos sem medo de perder meu pênis por isso, “minha virilidade”, comecei a julgar o papel com grande desenvoltura e tive uma clara visão das minhas tendências femininas, foi um verdadeiro contato terapêutico e, longe de despersonalizar-me e desassociar-me. Esse aprofundamento em meu personagem e em minha homossexualidade me permitiu compreender melhor não somente minhas fantasias femininas, como também a homossexualidade dos meus pacientes. Foi uma verdadeira “Catarse de Integração” (J. L. Moreno). A interpretação de papéis longe das minhas tendências habituais, enriqueceram minha experiência profissional psiquiátrica.

O Teatro integra quando se realiza um profundo trabalho com diretores talentosos. É fácil destacar que a homossexualidade de Tennesse Williams é origem de grande parte de suas obras teatrais e de sua relação de dependência mal resolvida com sua mãe. Eu preferiria que a psicoanálise trouxesse mais clareza sobre os mecanismos que fizeram a homossexualidade de Williams o converter em um dramaturgo de êxito, e não o contrário, qual foi sua singularidade específica. Porque nem todos os homossexuais são brilhantes dramaturgos como Williams. Sartre realizou um estudo sobre Genet, uma aproximação para a compreensão psicoanalítica da homossexualidade, da criação artística e da psicose. Mas Sartre, em sua monumental obra São Genet (ator e mártir), realiza um estudo minucioso e profundo da vida de Genet e da relação dialética com sua perversão, criação e inserção de classe, que completa um buraco da literatura psicoanalítica até então. Analisar como um sonho uma peça teatral é fazer uma psicoanálise silvestre. É parcializar totalidades. É reduzir a compreensão global do fenômeno estético. Em seu livro, Sartre trata de demonstrar que a realidade concreta da vida de um homem solitário pode ser compreendia mediante uma consideração de dialética e de liberdade atuante, em condições matérias dadas. Se Genet é um gênio, sua genialidade não é uma dádiva de Deus, ou de seus genes, senão uma saída inventada por Genet em momentos particulares de desespero. Sartre trata de redescobrir a escolha que Genet faz de si próprio, de sua vida e da significação do mundo, para se converter em escritor e para mostrar de que modo a especificidade singular desta escolha imprime inclusive os interstícios do caráter formal de Genet, a estrutura de suas imagens e as particularidades de seus gostos. Em uma palavra, aponta um recorrido outra vez com rigoroso detalhe: A história de uma libertação. Genet não se suicidou, não se converteu em uma vítima psicótica de suas fantasias, mas as dominou, através de sua imaginação de seus rituais e sua atividade como escritor. Seu teatro é uma tentativa genial e não se poderia somente explicar por seus condicionamentos anteriores; vai além de seu projeto. É absurdo pensar em uma filosofia que quisesse explicar obras de arte somente por fatores que as condicionam. Este enfoque é uma tentativa de reduzir o complexo ao simples, de negar a especificidade das coisas. “o método dialético aponta para algo completamente oposto a essa redução”. “O que temos que examinar e indagar, é a eleição que dá a vida sua singularidade, a opção de escrever, Flaubert nos revela o significado de suas fobias infantis, e não o contrário. Temos que buscar o movimento dialético que explica o ato por seu significado final, afastando-se da situação original” (Sartre). Aprendemos os gestos das nossas famílias, nossos papéis contraditórios que nos comprimem. Ao projetar-nos até novas possibilidades criadoras, voltamos e pensamos em nossos velhos desvios e gestos. Somo mais ricos, porém com os gestos e olhares do passado. Tentamos nos superar e em nossa mesma superação se revelam novas contradições e novas formas de conduta. O criador, homem de teatro, não repete em suas obras somente os gestões de infância, mas também sua obra é a superação desse passado condicionado. Sua forma de luta desesperada por superar seu passado, é o diálogo teatral. Os textos de um dramaturgo jamais revelam os segredos de sua biografia, que em realidade pode ser somente um simples esquema que permite descobrir tais segredos.

Disse Ionesco: “A criação supõe uma liberdade total, se trata de um processo diferente ao pensamento conceitual. Existem dois tipos de conhecimento: o conhecimento lógico e o conhecimento estético, intuitivo. Quando escrevo uma texto teatral não tenho a idéia do que será. Tenho as idéias depois. No começo é somente um estado afetivo. Para mim a arte consiste na revelação cotidiana de certas idéias que a razão e a mentalidade cotidiana me ocultam. A arte atravessa o cotidiano, precede um segundo estado. Chamo isso de minhas obsessões. Angustias. As de todo mundo. Sobre esta identidade se funda somente a possibilidade de arte. Meu teatro é a projeção do meu mundo interior no palco”.

Critica a Ionesco: Sua genialidade foi deslumbrante na criação da obra “A cantora careca” sua critica brutal sobre a pequena burguesia inglesa e a imponência de seus costumes, nos revelou um teatro que quebrava as leis do teatro tradicional, e por outra parte nos mostra a tentativa permanente de superar a angústia da morte, diante daquilo que ele chama “a rotina diária”. “Escrever para mim era uma longa e pesarosa cura psico-dramática”. Poderíamos dizer que apesar de tudo, não pode superar em suas criações futuras, sua própria angústia claustrofóbica. A ausência de uma relação dialética pessoa-sociedade só o levou a descobrir genialmente a incomunicabilidade dentro de uma sociedade decadente. Encerrou seu teatro em sua própria claustrofobia, sem poder entender que todo o teatro está impregnado da ideologia da classe dominante e que um escreve de forma critica com os mesmo vícios que possuí essa classe dominante. Acreditou que seu teatro estava isento de ideologia. “Idealizou” sua concepção de liberdade. Negou os parâmetros que o condicionavam como escritor. A genialidade de sua obra, A cantora careca nunca pode ser superada. Isolava suas angústias pessoais do contexto social que o rodeava. A ausência de um pensamento dialético o leva dizer, por exemplo: “Não gosto de Brecht porque é didático, ideológico. Não é primitivo, é primário. Não é simples, é simplista. Não dá matéria ao pensamento, ele mesmo é reflexo, ilustração de uma ideologia. O Homem brechtiano é chato, é unicamente social, falta a dimensão em profundidade, seu homem é incompleto, no máximo uma marionete. Porém, Ionesco agrega: “O ser humano segundo Brecht está condicionado unicamente para o social. Existe também entre nós um aspecto que nos dá liberdade. De todas as maneiras o homem brechtiano é um inválido, pois seu autor nega sua liberdade mais interior”. É curioso que esta crítica reacionária de Ionesco se identifica com Sartre em sua critica existencial contra o marxismo dogmático. Neste nível de escolha que Sartre define no homem condicionado e que define como projeto libertador do dado ou a superação do dado. Nos determinam, mas existe em nós esse nível de liberdade para nossas contradições e nossos condicionamentos. O que o sistema capitalista quer, é anestesiar este nível de liberdade. Essa é sua grande tarefa. O sistema impede o resgate desse nível de liberdade que o homem possuí para se converter em revolucionário e/ou em criador.

Resumos sobre Grotowsky
Vale a pena retomar alguns de seus conceitos teóricos sobre sua concepção de teatro, para ter a possibilidade de modificar a imagem do ator que a psicoanálise clássica define geralmente como expressão de tendências regressivas exibicionistas, dentro da estrutura de personalidade mais freqüente.

Disse Grotowsky: “O teatro, através da técnica do ator, arte onde o organismo vivo se soma a suas mais importantes motivações, oferece uma oportunidade que se poderia chamar integração, o prescindir das máscaras, a revelação da verdadeira essência, uma totalidade de reações físicas e mentais”.

“Essa oportunidade deve ser estudada de forma disciplinada, com o conglomerado de responsabilidades inerentes ao tema. Aqui observamos a função terapêutica do teatro para a civilização atual. É certo que quem atua é o ator, mas o faz somente em função de um encontro com o espectador, de forma íntima, manifestada, que não se esconde atrás de uma câmera, uma figurinista ou uma maquiadora, em direto confronto com ele, algo assim em vez dele”. “Essa atuação se manifesta, revela, se abre, surgindo do próprio ator, de forma totalmente oposta a toda obsessão, é um convite ao espectador. “Esse ato pode ser comparado a um ato mais profundo, radical e genuíno, de amor entre dois seres humanos, só uma comparação deste tipo pode explicitar esta saída de um mesmo com razoáveis garantias de analogia”. “Este ato paradoxal e duvidoso pode ser qualificado como ato total. Em nossa opinião, isso sintetiza a função mais profunda do ator. Por que vamos sacrificar tanta energia pelos nossos atos? Não para ensinar aos outros, senão para aprender com eles o que nossa existência, nosso organismo, nossa pessoa e experiência têm que nos faz aprender a derrubar as barreiras que nos limitam, a libertar-nos das amarraduras que nos atam, das mentiras sobre nós mesmos que diariamente fabricamos para nosso uso e para o dos demais; a destruir as limitações causadas por nossa ignorância e falta de valor”.

“Em uma palavra, fazer o vazio em nós mesmos para transbordar-nos. A arte é sobretudo uma situação de alma (no sentido de algo extraordinário, imprevisível momento de inspiração), não um estado do homem. A arte é um amadurecer, uma evolução, um vôo que nos faz emergir da escuridão para a chamada: luz. O Teatro só tem um sentido, nos empurrar para transcender nossa visão estereotipada, nossos sentimentos convencionais, nossos hábitos, nossos juízos, provenientes de uma moral impostora, não pela simples questão de destruir tudo isso, mas principalmente para que possamos experimentar o real, e prescindir nossas cotidianas fugas, nossos cotidianos fingimentos, em um estado de total desvalimento, tirar-nos os véus , dar-nos, descobrir a nós mesmos. Por este caminho “através do choque”, através do tremor que facilita nossa liberação das máscaras e costumes, estamos disponíveis, sem esconder nada, de entregar-nos para algo real, eticamente puro”.

“O ator, pelo menos em parte, é criador, modelo e criação sintetizada de uma só pessoa. Não deve se envergonhar como se todo isso o levasse ao exibicionismo”.

“Deve ser valente, o valor do desamparo, o valor da revelação de si próprio”.

“O Ator não deve ilustrar somente, mas levar adiante um ato de alma através de seu próprio organismo”.

“Partindo daí, pode enfrentar duas alternativas extremas, ou bem pode vender descaradamente o seu Eu encarnado, fazendo de si próprio um objeto de prostituição, o bem pelo contrário, pode dar-se a si próprio, santificando o seu Eu encarnado”.

As idéias de Grotowsky parecem resíduos em uma luta que entrava os baixos fundos do instinto com a atividade racional e mística do homem. Sua dialética se situa entre a reverência e a destruição do mito, entre a adoração e a blasfêmia.

Para Grotowsky o “modelo de ator” seria o anti-exibicionista, o homem que se oferece em seu máximo grau de nudez, desprovido de suas caretas e gestos impostores, reproduzindo um encontro inédito com o espectador em cada representação.

Desde este estado de pureza, cada encontro é uma tentativa quase mística de integração máxima com o espectador. O ator desprovido de suas caretas, através de um longo e doloroso processo de aprendizagem, se oferece como modelo ao espectador, servido neste caso de roupagem de gestos impostores.

Para Grotowsky a relação dialética ator-público seria quase oposta ao do teatro convencional.


*Artigo publicado pela revista bimestral especializada em artes cênicas
Saverio – Revista Cruel de Teatro (Buenos Aires – Argentina) – Ano I número 1 – Maio 2008
Revista Saverio é uma produção de NAZACA e conta com o apoio de Red Cultural del Mercosur
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